As famílias de Bruce Lowe e a transformação genética do PSI moderno, por Francisco Lança
O sistema de Bruce Lowe: contexto e limitações
O sistema de famílias maternas proposto por Bruce Lowe no final do século XIX marcou uma das primeiras tentativas de relacionar genealogia e performance atlética em cavalos de corrida.
A partir da análise de pedigrees de vencedores do Derby de Epsom, St. Leger e Oaks, Lowe numerou as linhagens femininas conforme sua frequência entre campeões clássicos, atribuindo às famílias de melhor desempenho os números mais baixos (Família 1, 2, 3 etc.).
Embora pioneiro, esse modelo apresenta limitações conceituais e estatísticas profundas. Seu método foi baseado em observações empíricas, sem controle de variáveis genéticas ou populacionais, e restrito a uma amostra geográfica e temporal muito pequena.
Falta de base genética mensurável
O sistema pressupunha que a performance seria transmitida de forma estável pela linha materna, mas ignora o fato de que o DNA mitocondrial, o único componente herdado exclusivamente da mãe, representa menos de 0,001% do genoma total (BAILEY, 2015), tornando restrita sua influência funcional.
O desempenho atlético, entretanto, depende de genes localizados no DNA nuclear, que é herdado em proporções iguais de ambos os genitores, onde outros fatores (genética nuclear e epigenética) têm peso muito maior. De modo geral, o DNA nuclear é recombinado a cada geração, de modo que, após 10–12 gerações, menos de 1% do material genético original da égua fundadora permanece nas descendentes (HILL & WEIR, 1988).
A contribuição genética das famílias tornou-se, assim, dinâmica e cumulativa, refletindo a interação entre diferentes tribos paternas ao longo do tempo.
Ou seja, o fato de uma égua pertencer à família “1-x” não garante que ela expresse os mesmos genes funcionais da raiz principal de 100 anos atrás e a transmissão de performance não é linear nem estável ao longo das gerações
Fragmentação e perda de significado biológico
Com o passar dos séculos, as famílias originais subdividiram-se em dezenas de ramos (por exemplo, 1-x, 1-s, 8-f, 9-c), sem preservarem uniformidade genética.
A genealogia moderna mostra que, após centenas de cruzamentos, essas subdivisões não guardam mais coesão genômica, mas apenas continuidade documental (HILL & WEIR, 1988).
Assim, duas éguas da mesma família Bruce podem compartilhar apenas um ancestral feminino remoto, sem qualquer similaridade genética mensurável, podendo significar zero afinidade genética real. O conceito perdeu precisão; é genealogia, não genética.
O sucesso das “blue hens”
O sucesso reprodutivo moderno dos Thoroughbreds está muito mais associado às chamadas “blue hens”, éguas de produção excepcional nas últimas décadas, do que às antigas famílias numeradas por Bruce Lowe. Exemplos como La Troienne, Hasili, Urban Sea, Courtly Dee, etc., ilustram como indivíduos recentes, e não as famílias originais, se tornaram os verdadeiros pilares genéticos do turfe contemporâneo. Essas matrizes excepcionais deram origem a múltiplas gerações de ganhadores de Grupo 1, estabelecendo camadas sucessivas de dominância genética que transcendem qualquer numeração histórica. Na prática, o termo “blue hen” substituiu o valor do número da família, pois o impacto genético moderno é essencialmente individual e funcional, refletindo a prepotência reprodutiva de determinadas éguas, e não uma herança numérica herdada de ancestrais distantes.
Substituição por tribos genéticas e nicks comprovados
O desenvolvimento da reprodução seletiva evidenciou que o desempenho e o valor reprodutivo dos Thoroughbreds são explicados com maior precisão pelas “tribos genéticas” e pelos “nicks funcionais”, ou seja, combinações recorrentes entre linhas paternas e maternas que expressam complementaridade biológica. Diferentes tribos, como as de Sadler’s Wells, Danzig, Kingmambo, Sunday Silence, Storm Cat, etc., tornaram-se referências objetivas de herança atlética, formando verdadeiras redes de compatibilidade genética responsáveis por características específicas de potência, equilíbrio, e capacidade de resposta ao treinamento.
Essas tribos consolidaram-se como núcleos de dominância genética, moldando traços de temperamento, biomecânica e aptidão atlética que definem o padrão do cavalo moderno. O sucesso reprodutivo atual não depende mais da linhagem materna isolada ou da numeração histórica atribuída por Bruce Lowe, mas da harmonia entre tribos genéticas e do grau de compatibilidade entre as estruturas herdadas de cada ancestral. Em síntese, a qualidade do cruzamento, e não o número da família, é o que determina a verdadeira consistência genética e funcional do pedigree.
A contribuição genética das famílias tornou-se, assim, dinâmica e cumulativa, refletindo a interação entre diferentes tribos paternas ao longo do tempo.
Avanço da genômica e dos índices moleculares
Com o advento da genômica equina e do sequenciamento de haplótipos, surgiram ferramentas como o Weatherbys Genomic Index e o Equinome Speed Gene Test.
Esses estudos mostraram ausência de correlação significativa entre o número da família e o potencial de velocidade ou estamina (CUNNINGHAM et al., 2001; EQUINOME, 2020).
A análise moderna prioriza a combinação de genética quantitativa, dados fenotípicos e histórico de produção das três primeiras gerações.
A influência dos garanhões na transformação genética das famílias maternas
O conceito de família materna parte da ideia de continuidade genética pela via feminina. Contudo, o progresso reprodutivo nos séculos XX e XXI mostrou que as contribuições paternas remodelaram de forma decisiva a composição genética das famílias.
A genética moderna das éguas é, portanto, um mosaico, resultado de múltiplas gerações de cruzamentos dominados por garanhões prepotentes.
A partir da segunda metade do século XX, a concentração da produção mundial em poucos garanhões, como Northern Dancer e Mr. Prospector, entre outros, impôs uma intensa pressão seletiva. Esses indivíduos difundiram genes associados à eficiência cardiovascular, metabolismo muscular e morfologia atlética, provocando homogeneização genômica nas populações (BAILEY, 2015).
Hoje, estudos indicam que as diferenças genéticas entre famílias clássicas representam menos de 5% de variação entre si (CUNNINGHAM et al., 2001). A preponderância do uso destes garanhões ao longo das gerações produziu:
● homogeneização genética, reduzindo diferenças entre famílias;
● seleção indireta de matrizes, priorizando as que melhor respondem aos nicks dominantes;
● incremento na consistência fenotípica e atlética, embora à custa de menor diversidade genômica global.
Assim, as famílias numeradas deixaram de representar linhagens puras no sentido genético e passaram a funcionar como referências históricas de compatibilidade, indicando quais combinações de sangue tendem a produzir bons resultados. Em vez de expressarem uma herança fixa, elas hoje servem como pontos de convergência, onde diferentes influências paternas e maternas se encontram para formar cruzamentos específicos mais equilibrados e eficientes.
Conclusão
O sistema de Bruce Lowe mantém valor histórico e didático, mas não tem poder preditivo genético nem relevância comercial direta.
Na criação contemporânea, a qualidade de uma matriz é definida por:
● a produção recente da linha materna,
● a compatibilidade genética com as tribos paternas dominantes, e
● o equilíbrio biomecânico e fenotípico do indivíduo.
Assim, as famílias de Bruce Lowe devem ser compreendidas hoje como conceitos históricos e simbólicos, e não como marcadores genéticos de performance. O Thoroughbred moderno é fruto da fusão entre antigas linhagens maternas e garanhões prepotentes, em um processo contínuo de refinamento conduzido pela seleção humana. A identidade genética de uma égua reflete muito mais a história recente de cruzamentos e interações entre tribos genéticas do que sua ancestralidade distante. O que determina o valor reprodutivo e atlético de um indivíduo não é o número herdado de uma matriz do século XVIII, mas a qualidade dos acasalamentos acumulados, a coerência entre linhas paternas e maternas, e a expressão fenotípica resultante dessa combinação.
Dessa forma, a análise contemporânea de um pedigree deve reconhecer que as famílias numeradas representam linhagens históricas, não genéticas.
O Thoroughbred é, em essência, uma linhagem híbrida produto da convergência entre ciência e observação empírica, continuamente aprimorada pela capacidade humana de identificar, preservar e combinar os genes que transformam a herança em desempenho.
A curva exponencial usada foi baseada na probabilidade de transmissão genética por segregação mendeliana: a cada geração, um indivíduo herda 50% do DNA de cada progenitor. Assim, a contribuição genética de um ancestral específico decai geometricamente:
Contribuição = 0,5(n−1) onde n é o número de gerações.
Referências
● BAILEY, C. J. Thoroughbred Genetics and Breeding Strategies. 3. ed. London: J. A. Allen, 2015.
● CUNNINGHAM, E. P.; DOOLEY, J. J.; SPAN, R. K.; BRADLEY, D. G.
Microsatellite diversity, pedigree relatedness and the contributions of founder lineages to Thoroughbred horses, 2001.
● EQUINOME Ltd. Speed Gene Test and Equine Genomic Analysis: Technical Report. Dublin, 2020.
● HILL, W. G.; WEIR, B. S. Variances and covariances of squared linkage disequilibria in finite populations, 1988.
● WEATHERBYS Group. General Stud Book and Thoroughbred Genomic Index. Wellingborough, Reino Unido, 2022.
Francisco Lança (*)
Médico-Veterinário e profissional do Agronegócio
Stud Manager - Godolphin in Japan
(*) Declaro que o conteúdo deste trabalho é de inteira responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente a opinião, políticas ou práticas do seu empregador. As análises, interpretações e conclusões aqui apresentadas foram elaboradas de forma independente, sem qualquer influência institucional. O autor também declara não possuir conflitos de interesse que possam ter afetado o desenvolvimento, os resultados ou as considerações expostas neste estudo.
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