ABCPCC entrevista: Lineu de Paula Machado (parte 1)
Idiossincrasia do turfe brasileiro, o Haras São José & Expedictus atravessou gerações, acumulando admiradores e troféus. Na memória de Lineu de Paula Machado, recordações de uma história fantástica, escrita por milhares de patas e iniciada, no século XIX, pelo avô Linneo.
Num meio tão complexo e peculiar como o mundo das corridas de cavalos – e dos cavalos de corridas – falar sobre unanimidades funciona como discutir o sexo dos anjos. Raros, pontos de convergência no gosto dos turfistas, quando identificados, possuem grande significado. No turfe brasileiro, uma das poucas unanimidades chama atenção pelo traje marcante. Ouro e costuras azuis. Há mais de um século, Linneo de Paula Machado, ao fundar o Haras São José & Expedictus, passaria a escrever a história do mais fundamental dentre os estabelecimentos criatórios brasileiros.
Em entrevista concedida à reportagem do site da ABCPCC, Lineu de Paula Machado, neto de Linneo, percorreu algumas das mais importantes passagens envolvendo o haras da família. Testemunha ocular de craques, acontecimentos e idealizador do centro de treinamentos Vale do Itajara, Lineu reviveu fatos marcantes relacionados ao Haras São José & Expedictus e abordou temas contemporâneos do turfe nacional.
Abaixo, a primeira, das duas partes, da entrevista.
Quando pensamos em Haras São José & Expedictus, além dos craques e conquistas que nos vêm à cabeça, de pronto surge a imagem de uma farda atuante, sem distinção, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Esse fato fez do haras, na sua opinião, a mais brasileira de todas as coudelarias?
R.: Meu avô era paulista e as propriedades do Haras São José & Expedictus localizavam-se em São Paulo. Em 1909, ele se mudou para o Rio de Janeiro. Em abril de 1911 casou-se com minha avó, Celina. Então, dado o fato de meu avô, mesmo com raízes paulistas, ter passado a morar no Rio de Janeiro, o haras sempre manteve essa política, de prestígio tanto para São Paulo quanto Rio de Janeiro, que foi acompanhada pelos filhos. Nesse sentido é interessante notar que grandes criadores cariocas tiveram, durante muito tempo, cocheiras em São Paulo. Recentemente, pela situação do Jockey Club de São Paulo, vários proprietários transferiram seus animais para o Jockey Club Brasileiro, como por exemplo, o Figueira do Lago. O esporte, em geral, vai aonde estão os prêmios e competição. Para você saber se sua criação está ou é competitiva só existe uma forma: competir. Então, a competição é o termômetro. Competimos na Europa, Estados Unidos, Argentina, Chile e Dubai. Vencemos e perdemos. Aprendemos muito e continuamos aprendendo.
Em se tratando de um haras secular, por certo há de milhares de histórias permeando sua existência. Mas como tudo começou? E, posteriormente, como você passou a acompanhar de perto o Haras São José & Expedictus?
R.: Desde os 7 anos meu avô Linneo gostava de corridas de cavalo. Foi nessa idade que seu pai, o médico Francisco Vilella, adquiriu do Coronel Bicudo um cavalo puro sangue inglês chamado Carestiamble – para montaria e para servir algumas éguas em sua propriedade em Rio Claro, São Paulo. Nessa época a Fazenda São José, fundada em 1839 por seu bisavô, ainda pertencia aos herdeiros de seu avô, o Visconde de Rio Claro. Em 1894, meu avô foi para Paris e por lá ficou até 1903. Seus estudos foram feitos no Licèe Janson de Sally e depois na École dês Hautes Études Commerciales. Nessa época não perdia as corridas de quinta e domingo do turfe francês, por nada. Quando voltou ao Brasil, pediu ao seu pai, já então proprietário da Fazenda São José, para fundar um haras. O pai, também um apaixonado pelo turfe, consentiu. Assim começou o haras em 1906. A minha relação com os cavalos começou muito cedo. Me acostumei com as muitas alegrias e algumas tristezas no dia a dia com os animais. Meu aprendizado veio do convívio com funcionários antigos, suas historias, desafios e sempre apoiado por meu pai e tio, além de veterinários e agrônomos que nos ajudaram a escrever a nossa história no turfe. Aos 17 anos comecei a participar com meu pai e tio das decisões do haras.
A base mais conhecida da criação PSI de sua família corresponde ao haras localizado em Rio Claro, no interior de São Paulo. Ao longo dos anos, porém, o Haras São José & Expedictus utilizou-se, também, de outros haras e espaços para desenvolver a sua criação...
R.: Os Haras São José e o Haras Expedictus localizados em Rio Claro e Botucatu, respectivamente, tinham climas, altitudes, padrão de terras e tamanhos diferentes. O Haras São José estava em uma área de 100 alqueires dentro de uma outra propriedade de 2.400 alqueires. Já o Haras Expedictus apresentava 300 alqueires em uma propriedade de 12.000 alqueires. Com a chegada da rodovia Castelo Branco, a propriedade acabou ficando com uma área total de 6.800 alqueires. O hipólogo John Aiscan insistia em nos lembrar e dar exemplos de antigos haras localizados em “terras cansadas”. Quando da mudança do Mondesir e do Sideral para Bagé, ótimos resultados me induziram a conhecer a região. Andei bastante, conhecendo aquela beleza de pastagens de leguminosas e gramíneas. Fui até Don Pedrito. Num Bento Gonçalves ao qual meu tio foi, consegui, depois de muito esforço, levá-lo a Bagé. Ficou impressionado. Me disse “lindo local, mas quero meus animais perto de mim, aqui é muito longe para eles”. Minha leitura foi “quero meus animais no meu quintal”! Aquilo representou um balde de água fria nos meus planos. Minha pergunta era como enfrentar aquela artilharia toda de genética, ótima criação e ainda turbinada com os centros de treinamentos? O Haras Expedictus era tratado como se não fizesse parte do “quintal”. Afinal o haras sede, com as melhores éguas e melhores reprodutores era o São José. Botucatu ficava longe. Foi quando o gerente geral do haras, Ângelo Spatti, me encorajou a estar mais presente no Expedictus. Passei a ir mensalmente no haras, que na ocasião tinha como veterinário residente o Doutor Arturo, um homem de enorme experiência na criação e em treinamento, tendo sido veterinário dos Seabra e veterinário residente quando da mudança do São Luiz para Vacaria. Minha conversa e aprendizado com ele foram inestimáveis. Daí surgiu a ideia de levarmos todas a éguas para o Expedictus, desmamar e mandá-los para o São José. Choque de clima, de pastagens, área de 300 alqueires já que na época tínhamos cerca de 150 éguas. Era, aparentemente, o movimento ideal. Faltava convencer os “patrões”. Queriam as éguas no São José, lógico no quintal deles. Foram 3 meses para, finalmente, convencê-los. Infelizmente, Doutor Arturo veio a falecer e não pode acompanhar e nos ajudar na mudança do antigo para o novo haras. Não existe haras velho. Entendo que existe terra mal tratada, super lotação, pastagem pobre, clima ruim, maus funcionários, má genética, péssimo reprodutor e existem criadores que não sabem onde o sol nasce. Querem progredir sem a ajuda de profissionais competentes, ou pior, quando os têm, ao invés de ouvi-los, lhes dão ordens.
Tanto em termos de genética quanto no que toca as técnicas de manejo e criação, a família Paula Machado ajudou a escrever história do turfe brasileiro no século XX. Ao seu lado haviam, também, outros haras e famílias, como os Seabra, do Haras Guanabara, e os Peixoto de Castro, da Fazenda Mondesir. Em relação aos dois citados, como você enxergava o antagonismo existente entre eles e o Haras São José & Expedictus? Existia algum tipo de rivalidade?
R.: Rivalidade enorme! Eram haras proprietários de animais espetaculares, que com suas torcidas davam ao público turfista embates fantásticos. O desafio de criar o melhor, de ter o melhor, baseados na disputa pelo esporte. Naquele tempo tínhamos um turfe digno, presente na mídia, e que por isso enchia os hipódromos.
Desde a sua fundação, o Haras São José & Expedictus notabilizou-se por importar para o Brasil éguas de famílias fundamentais da criação internacional. Quais foram, na sua opinião, as mais importantes famílias incorporadas à genética brasileira, em razão de importações feitas pelo haras?
R.: Vamos lá. A partir de Canicula, de nossa propriedade, vencedora da Polla de Potrancas em 1936, descendem Maki, Queen Fairy, Baronius, Brigitte, Fantasie, Plenty of Kicks, Toganho, Canzone, Laurus, Heracleon e outros. Fashion Dancer, mãe de Misty Moon, a única égua na historia do turfe mundial a produzir duas tríplices coroadas – Virginie e Be Fair. De Juracy descendem Bien Aimèe, Flaneur, Sem Medo, Tacy, Fontaine, Usuki, Heron, Super Star, Altier, Devon, Criolan e Young. De Milady descendem Quatiassu, El Flete, Black Bess, Cartaya, Derek, Luccarno, Ruban Bleu. A partir de My Ladyship, surgiram Tapuia, Tibetano, Aporé, Cristie e Jupira. Com Myrthee, houve a linha que originou Albatroz, Big Shot, Tucunaré e Moryba. Menciono ainda Flechoise, a partir de quem descendem Apolo, Nyx, Slick, Ever Ready, Apple Honey e Itajara.
Na linha da pergunta anterior, quais foram os reprodutores importados pela sua família, que mais lhe marcaram?
R.: Fort Napoleon, Formasterus, Felício e Know Heights.
E a interessante história do reprodutor Maboul?
R.: Maboul (de 1907, filho de Perth e Mad por Le Sancy) foi comprado por meu avô na França, em maio de 1913, pra correr com sua farda e depois vir servir como garanhão, no Brasil. Como alguns criadores franceses gostariam de utilizá-lo, o Maboul permaneceu algum tempo na criação francesa. Após esse período, meu avô o trouxe, de fato, para o Brasil – mais precisamente em novembro de 1918. Aqui produziu Ousada (1920), mãe de Xyleno (1928), ganhador dos Grandes Prêmios Ipiranga e Derby Paulista na Mooca, e de Zaga (1930), vencedora dos Grandes Prêmios Outono, Henrique Possolo, Grande Criterium e Criterium no Rio de Janeiro – ambos produtos do reprodutor Sin Rumbo. Como os filhos de Maboul na Franca estavam indo bem, amigos de meu avô pediram para que Maboul fosse, novamente, enviado à França. Acabou arrendado para o haras do Conde Le Marois, em dezembro de 1919. Portanto, deixou no Brasil uma geração somente. Em 1922, nasceu na França Pervencheres (Maboul e Poet’s Star por Chaucer). Essa égua veio a ser responsável por grandes animais no mundo e no Brasil. Foi segunda na Poule d’Essai des Pouliches e era irmã de Ponteba (1930, por Belfonds), por sua vez mãe de Pont L’ Eveque (ganhador do Derby de Epsom). Pervencheres produziu Barberybush (1934, por Ksar), segunda – a exemplo da mãe – na Poule d’Essai de Pouliches e que produziu Blue-Berry (1940, por Blue Skies), outra segunda colocada na Poule d’Essai des Pouliches, e Bastia (1951, por Victrix). Bastia produziu Right Royal (1958, por Owen Tudor) vencedor do Grand Criterium, da Poule d’Essai des Poulains, do King George VI & Queen Elizabeth Stakes e do Prix Lupin. Outro produto de Bastia foi Neptunus (1961, por Neptune) vencedor do Grand Criterium e da Poule d’Essai des Poulains. Voltando a Pervencheres, veremos que ela também originou Wood Violet (1928, por Ksar), no caso a segunda mãe de ninguém menos que Wild Risk. Fixando somente nas vias Right Royal (por meio de Falkland, Ruysdael) e Wild Risk (por meio de Waldmeister, Le Fabuleux, Worden, Karabas, Trevieres) perceberemos que graças a Pervencheres – e consequentemente a Maboul – o mundo turfístico teve, tem e terá a oportunidade de ver extraordinários animais e seus descendentes. Cito alguns exemplos como Orsa Maggiore, Sea Girl, Grison, Baronius, Virginie, Be Fair, Apple Honey, Itajara, Siphon, Sweet Eternity, Straight Flush, Arrogate, Apollon, Virga, Vada, Mani, Macar, Indian Chris, Implausible, Heracleon, Canzone, Christie, Plus Vite, Cheikh, Tizna, Grundy, Fain, Fallow, Scintillate, Blushing Groom, Tapit, Busted, Alexander Goldrun, Makybe Diva, Zarkava, Goldikova, Pivotal, Deep Impact, Gentildonna além, é claro, do fabuloso Frankel. Em resumo, sem o retorno de Maboul à França, a criação mundial não conheceria alguns de seus mais brilhantes alicerces.
Não obstante animais importados, reprodutores nacionais sempre foram uma constante na história do Haras São José & Expedictus. Você acredita que, caso outros haras tivessem adotado a mesma linha (de prestigiar o garanhão nacional em detrimento de apostas – muitas das quais sem fundamento – em reprodutores estrangeiros), o nível da criação brasileira poderia ser ainda maior nos dias de hoje?
R.: Uma resposta tipo “PSDB”. Sim e não. Acho que ao longo dos anos, a criação nacional melhorou muito. Investiu no melhoramento genético, na parte alimentar e em profissionais. Alguns desses animais criados nesse ambiente poderiam sim ser melhor utilizados. Porém, trazer uma nova genética é sempre muito importante. O turfe mundial hoje esta atrás, por exemplo, da linhagem do Galileo. Do Sunday Silence, via Deep Impact. Grandes haras no mundo estão mandando éguas ao Japão pra serem cobertas. Na Austrália, dentre muitos reprodutores que farão shuttle esse ano, está Maurice, ganhador de 6 provas de G1 e animal do ano no Japão. O maior haras do Japão tem éguas na Austrália e vice-versa. Esse é o mundo competitivo. O maior reprodutor atual do mundo, Galileo, produziu cerca de 1.900 animais. Seus números são impressionantes, pois produziu 150 ganhadores individuais de provas grupo. Dos seus filhos que correram, 10% venceram 343 provas graduadas. Destes ganhadores graduados, 70 animais venceram G1. Dos animais que correram 16% são blacktype winners. Ou seja, precisamos da sua genética também. Pessoalmente prefiro muito mais um excelente animal brasileiro, como exemplo o Setembro Chove, Acteon Man (não como corredor, mas como reprodutor) e Jeune-Turc, do que um animal com pedigree excepcional mas nunca provado em competição. Dentre os nossos reprodutores nacionais, o melhor foi Santarem (1924, filho de Novelty e Miss Florence por Gingal), derby winner e vencedor do GP São Paulo. Produziu 3 derby winners, o tríplice coroado Funny Boy, além de Big Shot e Ever Ready. Acho que nenhum reprodutor nascido no Brasil teve essa performance. Erramos muito, mas penso que as chances de acertar são muito maiores naqueles que mostraram aptidão na competição.
Animais de alto padrão tornaram-se uma constante durante toda a história do Haras São José & Expedictus. Houve, todavia, algumas determinadas gerações que marcaram época, como um todo. As letras A (1975), V (1994) e C (1997), por exemplo, reuniram alguns dos melhores corredores já criados por vocês. Quais são as suas recordações sobre essas gerações tidas como especiais? Dentre elas, qual a sua preferida?
R.: A primeira geração totalmente nascida no Expedictus foi a de 1986, a letra “L” de Livernon, Laurus, Levron, Licena etc. A letra “A”, citada por você, de African Boy, Aporé, Apple Honey foi nascida e criada no São José. Já as letras “V” e “C” nasceram no Expedictus foram criadas no São José. A letra “C” nascida em 1997 é a minha preferida, vez que 6 animais distintos venceram 9 provas de grupo I, incluindo o GP Cruzeiro do Sul (gr.I), GP Brasil (gr.I), duas vezes o São Paulo (gr.I), 3 provas da tríplice coroa, com direito a trifeta no GP Diana (gr.I) e ponta e dupla nos Grandes Prêmios Marciano de Aguiar Moreira (gr.I), Barão de Piracicaba (gr.I) e Mariano Procópio (gr.III). Salvo engano, na história do turfe brasileiro, nenhum haras produziu uma geração com esse resultado, tanto em razão do número individual de ganhadores de G1 quanto pela importância das provas por eles conquistadas.